Série "Mulheres Reais IFB" estreia nesta sexta; confira história de aluna autista do Campus Riacho Fundo
Tem início nesta sexta-feira, dia 6 de março, uma série de reportagens em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, comemorado em 8 de março. Intitulada “Mulheres reais IFB”, a série vai trazer ao conhecimento do público personagens femininas que integram a comunidade IFB, sejam alunas, docentes ou técnicas administrativas com atuação em diversos campi do IFB.
Elas foram selecionadas por terem destaque no âmbito profissional, trabalhando com dedicação, assumindo múltiplas tarefas, enfrentando desafios especiais ao longo da jornada e, claro, por serem lembradas com afeto pelos colegas de trabalho ou de sala de aula. São mulheres reais, que assumem jornadas duplas ou triplas e executam seu ofício diário com amor, expressando que se sentem realizadas e quebrando paradigmas sociais, culturais e econômicos.
A primeira personagem da série Mulheres Reais do IFB é a aluna do curso de Cozinha do Campus Riacho Fundo Raquel do Abiahy, de 41 anos de idade e diagnosticada autista apenas aos 39 anos. A modelo fashion inclusiva adora cozinhar, afirma que é onde se refugia desde criança. “Cozinhar e estar na cozinha me faz sentir segura e eu posso me comunicar por meio daquilo que cozinho. Também é algo que sinto que posso controlar, ao contrário do resto do mundo que me deixa tão ansiosa”, afirmou.
Outro desafio enfrentado pela primeira modelo autista adulta do Brasil é a passarela. Atualmente, trabalhando em uma agência inclusiva, Raquel fala com muito orgulho do seu ofício na área da moda. Em março, ela vai representar Brasília em um dos maiores eventos de moda em âmbito nacional, a Osasco Fashion Week. “O que me impulsiona é saber que estou vencendo um medo e fazendo algo que julguei que jamais seria capaz e também o fato de estar tornando visível uma grande parte de pessoas que se sentem e são tratadas como invisíveis”, disse a aluna. Dificuldades, tensão e ansiedade antes dos desfiles recompensam, segundo ela, porque todos os seus trabalhos na área de moda são de cunho social, que visam arrecadação de produtos e alimentos para instituições de caridade.
Enfrentando obstáculos diários como hipersensibilidade a odores e sons, resistência ao convívio social e a situações e lugares novos, além de dificuldades para se expressar, surpreendentemente Raquel credita ao preconceito sua maior inadequação em determinados ambientes. “A maioria das pessoas pensa que se determinada pessoa não é um autista que chamamos clássico, aquele não-verbal e com sérios comprometimentos cognitivos e estereotipias, então essa pessoa não é autista, pois é algo que não se consegue ver, como as deficiências comuns, sendo que autista não tem cara”, esclareceu.
A utilização de transportes públicos, por exemplo, é um grande desafio para Raquel. “Sinto agonia aos toques, não gosto que me toquem ou me abracem, meu corpo fica totalmente tenso e é bem difícil usar transportes públicos. Uso a minha carteira especial aparente, mas ninguém me cede lugar porque eu não tenho a cara que esperam que um autista tenha”, relatou.
O diagnóstico tardio foi um dos fatores que perpetuou a sensação de ser diferente, inferior ou atrasada em relação aos demais colegas. A aluna só foi diagnosticada na idade adulta, aos 39 anos de idade, o que gerou um alívio quando descobriu o verdadeiro motivo de se sentir assim. “Antes eu me via como uma pessoa atrasada, inadequada e me cobrava muito por não ter conquistado o que a maioria das pessoas da minha idade já conseguiu. Hoje me enxergo com mais compreensão e aceitação das minhas limitações, me respeito mais e me admiro mais. No dia em que peguei o documento e li a conclusão dos testes, foi um alívio imenso”, falou.
Hoje, Raquel entende que seu tempo é diferente dos demais, o que não compromete sua capacidade cognitiva, intelectual e profissional, tampouco a impede de ocupar espaços e assumir lugares de fala na sociedade. “Minha sensibilidade sensorial me desgasta e drena muito da minha energia e eu não tenho o pique que gostaria, preciso fazer uma coisa de cada vez, me permitir um tempo de recuperação porque ao realizar uma tarefa ligada ao meu hiperfoco, por exemplo, que é cozinhar – citando um exemplo – eu ando para lá e para cá parecendo um pêndulo de piano; só depois do diagnóstico consegui entender esse comportamento meu como uma necessidade autorregulatória, porém isso me cansa fisicamente”, disse.
A discente fala com muito afeto do IFB, pois antes não tinha vida social e mal tinha amigos; já hoje o campus é como se fosse sua casa e adora estar entre os colegas de sala de aula. “Quando cheguei ao IFB, eu não imaginava que poderia encontrar apoio porque sempre tive muita dificuldade em termos de convívio social, trabalho em grupo, apresentações de trabalho especialmente. Assim que cheguei, fui escolhida como representante; fiquei lisonjeada, inclusive, porém os problemas e demandas aparecem. É aí que minha dificuldade de me comunicar e lidar com discussões me causou uma ansiedade imensa, eu cheguei a perder dias de aula de extremo cansaço”, relatou.
Em sala de aula, ela explica que tem dificuldade de concentração devido ao barulho, mesmo com o uso de protetor auditivo. Na cozinha, ela diz que é extremamente sistemática, mas que os colegas a compreendem. “A cozinha exige que eu seja atenta, e pra que eu execute melhor as funções, eu preciso seguir ordens claras e regras; é bem difícil quando algo não dá certo ou precisa ser mudado, porém os colegas entendem e não tive nenhum problema com isso ainda. Eles foram todos muito compreensivos, inclusive os professores, que sabem da condição também”, disse.
Raquel é licenciada em História pela UPIS, também já concluiu o curso de Análises Clínicas na ETESB, entretanto nenhuma dessas áreas a deixava confortável para exercer a atividade profissional, especialmente pela ansiedade em lidar com o público e pelos efeitos colaterais das medicações diárias. Já na cozinha ela se sente à vontade. “Sempre percebi que autistas precisam de ajuda para fazer algumas coisas simples e serem mais independentes, e tenho vontade de estimular que mais autistas cozinhem e que eles tenham espaço também nesse ofício”, completou.
O diagnóstico de autismo para Raquel não foi intimidador, mas sim o início de um processo para a aceitação das suas limitações. “Eu passei 39 anos acreditando que eu tinha algum problema, até porque várias pessoas diziam que eu tinha e médicos me diagnosticaram com o que eles achavam que eu tinha, e sou simplesmente autista. A partir daí percebi que andei procurando respostas na direção errada e só agora sinto que estou no caminho certo, que pertenço a algum lugar”.
Hoje, o caminho da aluna é diferente de alguns anos atrás, quando já enfrentou depressão e crises de pânico e precisou dar algumas pausas na rotina diária. “Muita coisa se apresentou após meu diagnóstico, pois conheci pessoas, conheci causas e descobri que tenho por quem lutar, porque vejo as histórias dessas pessoas na minha própria história e sinto que temos muito em comum. É isso que eu tenho feito. Meu diagnóstico me tirou da roda de comparações e tortura interior por ser quem sou e me colocou caminhando, de pé e com a cabeça erguida na estrada do autoconhecimento. E só assim pude assumir o que sempre amei fazer, que envolve a culinária, a moda e os projetos sociais”, finalizou.
Além disso, a modelo acredita que pôde abrir os olhos para a deficiência e para a pessoa com deficiência. “Eu simplesmente era empática com a causa, mas não com a mesma consciência que tenho hoje, e isso me apresentou um mundo novo de conhecimento e informações, me possibilitou conhecer pessoas extraordinárias, ser uma modelo fashion inclusiva e criar perfis de redes sociais que desejo que ajudem mais e mais deficientes a se sentirem vistos, entendidos, aceitos”, detalhou.
Raquel acredita que enfrenta duplo preconceito pelo fato de a mulher ser estigmatizada na cozinha e dentro dos diagnósticos de autismo. Assim, para ela, ser mulher hoje no Brasil é um desafio, especialmente porque continua-se tentando quebrar paradigmas também pelo momento bem complicado da nossa história. “A mulher alcançou seu espaço por direito nas últimas décadas, mas ainda precisamos estabelecer esses espaços, o que é consternador. É inacreditável que tantas coisas tenham mudado e ao mesmo tempo tenham se mantido tão arraigadas. Pra começar, tivemos que lutar por algo que sempre deveria ter sido nosso; agora parece que precisamos provar que merecemos. E, com isso, incomodamos. Mas vamos continuar, sabe, vamos continuar incomodando muito, assim espero, isso significa que estamos movendo tudo de lugar”, incentivou Raquel.
IFB em números
Estatisticamente, atualmente o IFB possui 341 técnicas administrativas e 335 docentes, além de um corpo de alunas de mais de 10 mil discentes. No IFB, podem ser ressaltados ainda projetos de ensino, pesquisa e extensão voltados para mulheres, assim como cursos de formação continuada e eventos voltados exclusivamente a esse público.
Desde o início de sua atuação, o IFB promove ações de promoção da equidade e combate à violência contra a mulher, tendo sido a instituição da Rede Federal a abrigar a coordenação nacional, por exemplo, do Programa Mulheres Mil, que com uma metodologia especial promovia cursos de formação inicial e continuada especificamente para mulheres abordando também ações de direito, saúde, autoestima e empoderamento feminino.
Outras atividades foram além dos muros da instituição, sendo ofertadas em regiões como a Cidade Estrutural. Uma delas foi a “Tertúlia Literária Dialógica”, que chegou a virar método e livro (Editora do IFB/2015) e envolveu vários campi do IFB.
O curso de Viveiricultora (Campus São Sebastião) é um exemplo de uma atividade continuada que tem um olhar especial para o feminino no campo. Já o Campus Brasília promove há uma década o SER Negra – Semana de Reflexões sobre Negritude, Gênero e Raça. E tem projeto com as mulheres na construção civil (Campus Samambaia), além de colóquios como o Contos de Luas e Lutas dos Saberes Femininos, concurso de redação IFB pela vida das mulheres, projetos com mulheres em situação de rua e curso de doulas.
Na área da Pesquisa, o IFB coordenou o projeto Meninas na Ciência, que em 2018 reuniu em duas oportunidades estudantes de todas as instituições do País que formam a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnologia com o desafio de que elas, em equipes, criassem protótipos de equipamentos que pudessem ser utilizados em salas de aulas para auxiliar estudantes do Ensino Médio nas áreas de Química, Física, Matemática e Biologia. E, neste ano, 100 meninas dos 10 campi do IFB estão participando do Steam Power for Girls, promovido pela Embaixada dos Estados Unidos em parceria com o IFB e a UnB.
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